domingo, 1 de julho de 2018

OÁSIS DE LIMA CAMPOS


Ana Miranda, Escritora

Numa rua do Icó, nos anos 1930, andava uma moça faceira em seu vestido rude, costurado por ela mesma. Vaidosa, enfeitava-se de colar, brincos, talvez uma pulseira, e, se calçava algo, seriam alpercatas gastas: era moça sertaneja. Ia debaixo de uma sombrinha, movendo os quadris com sentimento de pecado. O doutor, que passava em seu carro, apaixonou-se ao primeiro olhar, cortejou a mocinha, e se casaram. Ela era filha de um engenheiro autodidata que em 1931 tinha vindo da Paraíba com a família, a fim de trabalhar na construção do açude Lima Campos.

Ele, o doutor, estava em Lima Campos para fundar e tocar um posto agrícola. Engenheiro agrônomo acabado de se formar em Viçosa de Minas, levava com o maior entusiasmo seu primeiro trabalho. Construiu uma casa rosa, rodeada de varanda pelas quatro fachadas, ampla e arejada, cercada de jardins. Com outros engenheiros puxou canais de irrigação trazendo a preciosa água do açude Lima Campos, vinda de Orós. Terminados os canais, ele ordenou o plantio nas vazantes de feijão, arroz, milho, melão, melancia e outros gêneros alimentícios, assim como o de cana e algodão. Ao mesmo tempo fazia pesquisas agrícolas e experimentos vegetais, para enfrentar as particularidades da região. E formava criadouros de animais, como galinhas, cabritos e ovelhas.

Em torno da casa havia antigas mangueiras, ateiras, cajueiros, e ele plantou diversos bosques de árvores persistentes, de clima quente. Eram largos os pomares de espinhosas, como laranjeira, limoeiro, tangerineira. Mandou trazer da Califórnia mudas de frutas, como grapefruit; e, do Líbano, sementes de tamareiras. Plantou-as com cuidado e as árvores vicejaram, floriram, deram frutos nutritivos, saborosos. Ali até parreiras davam cachos de uvas, e se fazia um vinho borrento que chamavam de grapa. A moça recém-casada ia dormir sentindo o perfume suavíssimo dos laranjais, ouvia os estalos das vagens se abrindo, o canto de pássaros, pios e sons de bichos atraídos pela água e pelos alimentos, as risadas das moças agregadas. Cheia de alma, a casa recebia forte influência feminina.

Mas a vida daquele casal era uma peleja diária. Houve dois estios brabos, um deles a Grande Seca de 1942, que amarelou a paisagem, desnudou a terra em volta do Posto Agrícola, e baixou perigosamente o nível das águas do açude. O Posto transformou-se num oásis, naqueles dias cada vez mais abrasantes e noites cada vez mais frias. O doutor se desdobrava em cuidados para com as plantas e águas, e dava trabalho e moradia aos retirantes que desciam a serra de São Miguel, na fronteira com o Rio Grande do Norte. Chegavam aos magotes as famílias sedentas, famintas, empoeiradas, a pele arranhada pelos espinhos e gravetos secos da caatinga. As crianças, mais frágeis, adoeciam. Como não havia casa para todos, uns se instalavam à sombra das árvores, em meio aos pomares, à beira dos canais. Os homens trabalhavam no plantio e nos regos, e não lhes faltava comida e água.

Comovida, a esposa do doutor alimentava as crianças, dava-lhes banho, tirava-lhes piolhos da cabeça, espinhos dos pés, tratava suas feridas, e as levava ao médico. Além de desnutridas, muitas padeciam de uma epidemia de tuberculose que dizimava famílias inteiras. Terminada a seca, as famílias retornaram a suas terras, mas deixaram crianças para crescerem ali. Foram os primeiros filhos daquele casal. Depois nascemos minha irmã e eu.

Há poucos anos sobrevoei o Posto Agrícola Lima Campos, num helicóptero fumacento. De longe, após um voo sobre mata seca depois de mata seca, já se via o oásis, a mancha verdejante, as árvores frondosas, e os vários tanques de piscicultura construídos posteriormente. Lima Campos continuava a ser uma cidade pequenina, de uma ou duas ruas, com seus moradores gentis, pacatos, calmos, sentados nas calçadas ao entardecer. Suas casas têm quintais cheios de árvores, nunca me esqueço de um pé de seriguela carregadinho como nunca vi. A casa rosa ainda está lá, e por milagre se mantém exatamente a original; mesmo alguns móveis são do tempo de meus pais. Pertence ao Dnocs.

Ali estava o sonho do jovem agrônomo: a aplicação do modelo de postos agrícolas em todo o Ceará, ou em todo o árido e semiárido nordestino. Um modelo simples, com açude, irrigação, plantio, criação. E o Ceará se transformaria numa espécie de grande kibutz, com áreas verdes produtivas. Um amigo que conhece bem essa história teve a ideia de fazer na casa rosa um museu agrícola, com o nome de meu pai. Museu doutor Raul Miranda.

Ana Miranda


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